sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Um conto para esta sexta-feria 13

Necronomicon
Álvaro A. L. Domingues 

Finalmente eu tinha o que desejava. Um velho antiquário me vendera O Necronomicon. O Grimório dos Grimórios. O desejo de todos os magos e o terror de todos os fracos. O alfarrábio recendia a papel velho, embora alguns autores tivessem dito que suas páginas eram pergaminhos feitos a partir de pele humana. E para dar um tom mais aterrorizante, diziam que a pele de muitas pessoas fora arrancada quando elas ainda estavam vivas. Se ele fosse aberto em determinada hora, poder-se-ia ouvir os gritos. Pouco importava, pois jamais abriria suas páginas. Não desejava tamanho poder, queria apenas o livro.


Enquanto carregava o pesado volume para casa, fiquei imaginando a cara do irmão que fizera demoradas pesquisas na internet e garantia que o livro não existia.


Levei-o para meu quarto, escondendo-o o melhor que pude, dentro de minha gaveta de camisetas. O meu irmão não mexeria lá, pois não gostava do estilo de minhas roupas. Heavy Metal não era a praia dele desde que raspara a cabeça e se juntara com um grupo de skin heads. Não entendia a opção de meu irmão. Não combinava com seu jeito nerd gritar slogans racistas e bater em punks, nordestinos e metaleiros. Na verdade achava que fazia isso só para me menosprezar. Neste instante senti ódio. Não dele, mas das coisas que o transformaram de um tímido internauta em um agressivo skin head. Percebi que não era um simples raiva, nem ódio comum. Era um ódio que vinha de dentro.


Naquela noite tive um sonho estranho. Estava no Tribunal da Inquisição cercado de frades. Eu era o réu. Estava acorrentado, ao lado de dois soldados. Ouvia cânticos gregorianos, e entre os frades via meu irmão com um rosto assustado. Viu em cima da mesa do juiz o Necronomicon, a prova contra mim. Vários frades me acusaram de práticas sinistras que envolviam bruxaria e até sacrifícios humanos. Chegou a vez do irmão falar. Sabia que meu irmão não gostava de mim e desprezava qualquer coisa em que acreditava e que provavelmente corroboraria as acusações. Fiquei aguardando o pronunciamento, mas acordei antes de ouví-lo. Levou algum tempo para perceber que aquilo fora um sonho, mas a sensação de ódio permanecia. Era uma hora da manhã.


Lembrei-me do livro. Abri-o com cuidado. Senti um forte cheiro. Não era simplesmente o cheiro de mofo ou de "guardado", mas, se pudesse defini-lo, seria do próprio Inferno. Apesar de nauseado, continuei. O livro era escrito em árabe. Isso me deixou zangado a princípio, mas o que poderia esperar? O livro poderia estar escrito em sanscrito, latin ou em qualquer língua desconhecida para mim e até para o mundo, já que teoricamente o Grimório fora escrito por uma humanidade extinta, esperando para ser despertada.


Olhava as palavras com frustração, quando as letras começaram a se dissolver diante de meus olhos. Talvez o primeiro contato com o ar tivesse feito isso, mas não era um fenômeno tão simples de ser explicado. As letra surgiram de novo, agora em português, um português muito antigo, parecendo daquelas cantigas de amigo que vira em minhas aulas de literatura. Meu instinto de preservação, ainda alerta, fez com que fechasse imediatamente o livro, mas a curiosidade falou mais alto e o abri novamente.


Comecei a ler o texto e senti aquele ódio novamente. Imediatamente, ouvi o som de cantos gregorianos e vi as páginas transformarem-se numa visão do julgamento que assistira. Me vi novamente como o réu em julgamento e meu irmão depondo:


– Ele é inocente! O Grimório é falso! Um de vocês o colocou em seu claustro apenas para provar sua culpa!


Ouvi um grande oh! Seguido por um burburinho. O Juiz se levantou com visível raiva:


– Prendam este insolente! Ele será julgado junto com o irmão, como cúmplice!


A cena seguinte foi ver a mim mesmo e meu irmão sendo queimados em uma grande fogueira. Senti até as dores. Talvez tivesse gritado e acordado meus pais e o meu irmão.


Quando voltei a mim viu-me diante do livro. Não havia mais ninguém em seu quarto, sinal de que não gritara. E no livro a palavra escrita em caracteres góticos: VINGANÇA.


Bateu-me uma forte sensação de cansaço e voltei a dormir. Acordei muito tarde, muito mal. Meu irmão saira como de costume sem destino definido, já que abandonara tudo em prol de sua "turma".


Minha mãe estava preparando-se para sair. Após alguns meses desempregada, estava indo trabalhar. Recomendou-me um monte de coisas já que eu ficaria só em casa e dali a pouco iria para a escola.


Fiquei só por cerca de meia hora sem muito animo par fazer nada, quando contrariamente a seu costume, meu irmão voltou. Sua aparência estava muito estranha. Eu diria que apavorado.


– O que houve perguntei? -- perguntei.


Meu irmão me olhou com os olhos cheios de pavor e disse:


– Um de meus amigos skin head foi assassinado. E com requintes de crueldade: arrancaram a pele dele deixando-o morrer aos poucos, cheio de dor.


Tranquilizei meu irmão o melhor que pude. Quando ele se acalmou, fui até meu quarto correndo. Abri minha gaveta e, logo abaixo do Grimório, cuidadosamente dobrado algo que julguei ser pele humana. Uma sensação forte de satisfação percorreu todo o meu ser. Mas sabia que não pararia ali.

4 comentários:

  1. Ei , curti o conto! abs patati, grande apreciador de tudo que conjuga, direito, o antigo com o novo!

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  2. Gostei do conto e do blog. Jah to seguindo.
    Dê um visita no meu http://bigbazzinga.blogspot.com/

    Abs!

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  3. Gostei muito do conto. Prendeu muito a minha atenção. O blog também está muito interessante.
    Sonia

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  4. Muito bom, Álvaro. A gente se transporta no conto. As imagens são muito bem desenhadas.

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